Unabomber digital
Será que um dia a gente consegue?
Todos os dias, milhares de pessoas (talvez sejam só centenas, ou dezenas) fazem, curtem ou compartilham memes que se referem a um desejo — reprimido fora da tela do celular — de se isolar da sociedade, ou pelo menos das redes sociais. Um estilo de vida primitivo, rústico, ou só mais simples, numa espécie de anapaulaarosismo cultural. Admito que essa premissa me pega um pouco, mas só um pouco mesmo. Ter uma casa num canto afastado, com um quintal que talvez exija um pouco de destreza pra aparar a grama, cuidar da horta de temperos e talvez ter que abrir mão dos confortos de uma cidade que tem tudo o tempo todo? Sim, acho que já pensei nisso. O Unabomber (Ted Kaczynski) também — mas em 1971. Ok, ele matou uma galera depois, mas um matemático brilhante também teve esse pensamento de viver recluso. O que não me agrada é a ideia de abrir mão de certos luxos do século XXI, como ter a música que eu quiser em dois cliques, em vez de ter que ir buscar um álbum inteiro no 4shared e torcer pra estar em boa qualidade, ou poder escolher o filme que eu quiser sem precisar se preocupar porque pegou a fita dublada e você acha ótima a atuação do Guy Pearce em Memento — também porque assistiu em inglês. A gente era menos conectado, sim, mas muita calma com a nostalgia, porque o iTunes era uma bosta e a Blockbuster cobrava caro demais.
Num dia desses, vi uma apresentação de uma colega de trabalho falando sobre Yoga e como isso mudou a vida dela pra melhor. Me identifiquei nos primeiros 10 segundos da fala, quando ela disse que notou um certo desconforto nos hábitos. Ela também não conseguia mais ir da porta de casa até o elevador sem dar uma olhadela no celular. Doeu. Eu também interajo com a tela esperando o elevador, ou no intervalo de 30 segundos do streaming — coisa que eu acho uma filhadaputagem, mas isso fica pra outra hora —, ou mesmo quando o jogo de futebol tá parado porque o goleiro caiu pra fazer cera e seu time tá na frente. Essas microrrecompensas se tornaram um hábito tão enraizado e frequente que às vezes eu só queria ver que horas são, mas peguei o celular, vi uma notificação, abri o Instagram, vi um vídeo, outro, outro, olhei o grupo do futebol e confirmei que sim, quinta-feira eu jogo, vi um amigo mandando uma figurinha zoando o Corinthians e mandei ele tomar no cu e ri, coloquei o celular no bolso e… percebi que, três minutos depois, eu não vi a hora que era quando peguei o celular — e eu nem deveria olhar o celular, porque comprei um desses relógios que mostram como eu tô dormindo, respirando, quantos passos eu dei, quanto isso representou em distância e quantas calorias eu queimei; me mostra as notificações do WhatsApp, e é por causa dessa função que eu comprei essa porra: pra não ficar pegando o celular e ignorar notificação que não fosse sobre algo urgente, tipo buscar meu filho na escola porque ele tá com febre ou “tá pegando fogo na casa” ou “traz pão quando chegar do trabalho”. E, veja só, ele mostra as horas também. Em algarismos romanos, se eu quiser, porque dá pra trocar a telinha.
Também notei que as redes sociais me causam incômodos diferentes. O Facebook, que eu só tenho por uma questão de comodidade — já que tenho login em alguns serviços por causa dele —, é um incômodo por existir. Eu não quero perder meu histórico do Spotify só porque troquei o modo de login. O Twitter virou um lugar que eu descreveria como a Avenida Paulista em dia de protesto bolsonarista, além de permitir nazismo recreativo. Uso bem menos do que antes; talvez um dia eu consiga realmente parar de vez.
O LinkedIn é o lugar onde alguém aprendeu sobre gestão e liderança até sofrendo acidente aéreo. Infelizmente, é bastante usado e necessário na área que eu escolhi, mas por sorte não tem nada lá que eu seja obrigado a consumir — além de boas dicas de cursos pra aumentar meus skills.
E, por fim, o Instagram. A rede onde todo mundo viaja, todo mundo é feliz, amado, legal e admirado. Essa amargura com a rede pode soar como inveja, mas o que ela se tornou me deixou com esse azedume. Gente que ficou rica fingindo ser rica e ter um determinado lifestyle, e sendo contratada por marcas pra fazer com que as pessoas consumissem determinado produto ou serviço pra se parecerem com as pessoas que fingiram ficar ricas, na esperança de também ficarem ricas — alimentando uma certa obsessão e girando uma roda que parece que não vai parar tão cedo. E se você abre os stories daquele seu primo que teve filho, dois perfis depois vai ver um anúncio de alguém que provavelmente é picareta. E como você sabe que ele é picareta? Porque ele te promete alcançar algum resultado em algo que você tem interesse através de “técnicas” ou “métodos”. Tudo isso por um produto que poderia custar [insira valor de 4 dígitos], mas vai custar só [insira valor + 90 ou 99 centavos]. E não é só isso! Você ainda leva de brinde um e-book que vai te deixar puto, porque tá pagando muito barato por algo que vai fazer só nos primeiros dias. Nessa palhaçada toda, pelo menos eu consegui ver um conteúdo útil: sobre como a escrita à mão voltou a ser usada em um país de primeiro mundo que eu não lembro qual é, e como isso teve impactos positivos na educação dos jovens — já que digitar é muito rápido, prático e não exige exatamente a mesma capacidade mental que a escrita manual. Eu mesmo tentei, sem zoeira, uns 30 meios de me organizar pra todas as tarefas do dia, semana, mês, trabalho, vida pessoal, estudo… mas, no fim das contas, pra mim é melhor usar papel e caneta, já que o hábito de abrir o aplicativo que “vai revolucionar meu cérebro” nunca foi adquirido. Com isso, também tô treinando pra melhorar minha letra, que sempre foi feia. Escrever ajuda mesmo, rapaziada. Mesmo que você vá passar aquelas anotações do seu estudo pra um bloco de notas ou algo do tipo, faz no papel primeiro. Você pensar no que está escrevendo, letra por letra, ajuda demais a memória. E não, digitar sem olhar pro teclado não é a mesma coisa — embora eu reconheça que escrever todo esse texto até aqui, tendo apertado o backspace apenas umas dez vezes, é digno de uma certa destreza. Ah, e tem outra coisa profundamente irritante no Instagram: a quantidade de vídeos de criadores de conteúdo, principalmente os que falam sobre assuntos sérios, como saúde, por exemplo, e que precisam muito chamar a atenção com gestual exagerado, gritos, surtos. Eu jamais me consultaria com um nutricionista que faz vídeos no corredor do supermercado jogando as embalagens pra cima pra tentar provar que a Coca Zero é melhor pra dieta que o suco de laranja.
Esse texto, por exemplo, ficou guardado uns dois meses. Escrevi e reescrevi na minha cabeça, mas, na semana passada, fiquei profundamente puto com um comentário feito pra ser apedrejado — “chapiscado”, como dizem os jovens hoje em dia — de todas as formas possíveis, e quando me vi quase apertando o botão de enviar a resposta, pensei no texto, na vontade de só ter WhatsApp, no fato de que, se eu usar menos o celular, tudo isso vai passar. Eu vou poder voltar a me esforçar na tentativa número nhenhentos de readquirir o hábito de consumir livros, filmes e séries como eu fazia antes: começando por algo que eu já vi ou li e, quando o hábito for retomado, partir pras descobertas. Porque, veja só, comprei Futebol à Esquerda e Brasil, Anos 80 na feira do livro do Pacaembu e, até agora, mal terminei (pela segunda vez) 1984, que comecei há uns três meses (mas fala sério, que livraço do caralho, né? Até tenho uma tatuagem sobre o livro). Tô com uma lista de dez séries pra ver, mas tô revendo You, pra depois ir pro inédito. Tenho uns 20 filmes que quero ver, mas, da última vez que vi um inédito, perdi duas horas da minha vida. The Jester é um insulto à sétima arte. O criador daquela bosta não só tinha que ser preso, como deveria ser judicialmente proibido de se intitular cineasta. Mas, ok, sejamos justos: eu também assisti Ainda Estou Aqui e, realmente, doutora Fernanda Torres matou a pau.
Além de tudo isso, tem o fato de que meu celular tá morrendo enquanto escrevo esse texto. Não morrendo como certas pessoas que fingem estar moribundas pra fugir da Papuda — morrendo mesmo. Desliga sozinho, fica sem som do nada. Conveniente pra quem quer manter no celular apenas o que for obrigação profissional, mas, se por acaso alguém importante na minha vida se vir no improvável cenário de precisar falar comigo, meu e-mail ainda funciona.
Até outro dia!
Muito tempo sem escrever, normalmente as pessoas tem recomendações audiovisuais a fazer, mas como eu só não sou atrasado quando o assunto é música…
Se você ainda não viu o Tiny Desk com Péricles, veja. Só tem hit e o cara é carismático demais.
Um amigo me indicou uma banda chamada Momma, e ela me lembra bastante o que eu escutava nos anos 90, sobretudo Smashing Pumpkins e My Bloody Valentine.
Talvez não seja exatamente uma novidade, mas o Spotify caprichou no meu descobertas da semana de uns tempos atrás e me indicou uma banda de hardcore holandesa chamada De Kleine Opstand. Achei bem bom, mas de músicas assim eu sou suspeito pra falar.


Excelente!
Me peguei hoje fazendo a mesma coisa com o objeto maldito. Pior: na mesa durante almoço com mais duas pessoas. É como se precisássemos da recompensa que você falou... Não suportamos muita monotonia ou situações em que temos que pensar nos próprios problemas/sentimentos/sensações.
Seu texto ficou mto bom também por ser nesse vai-e-vem que fazemos com o celular também.
Ser uma vítima/ser um rato de laboratório nisso tudo também me incomoda demais. E parte de eu ter ficado meio que fora de tudo se deve a isso... No entanto, também não melhorei mto. De repente conectar de verdade ajude.
Por fim: coloquei o Momma e a outra banda pra ouvir.
Estou ouvindo bastante Wet Leg (já tá bem conhecido, mas tem uma pegada indie) e Viagra Boys (post-punk ou algo do tipo) esses dias.